[Texto 2] Marxismo e a opressão às mulheres: por uma teoria unitária, por Lise Vogel

Tradução por Felipe Lakatos. Apresentação por André Porto Freire.

Os artigos que se seguem foram escritos pela feminista-marxista estadunidense Lise Vogel, e estão compilados em seu livro Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory [Marxismo e a opressão às mulheres: por uma teoria unitária], publicado em 1983. A edição deste livro se dá num contexto de dissenso do debate sobre o trabalho doméstico, que ocorreu nos EUA e na Europa nas décadas de 1960 e 1970, e tinha como objetivo teorizar sobre o caráter do trabalho doméstico, isso é, se ele seria produtivo em termos marxistas e se ele formaria um sistema autônomo ao capitalismo, com uma lógica própria. A partir disso, Vogel se lança ao debate numa tentativa de sistematizar a perspectiva da reprodução social enquanto uma teoria unitária sobre a opressão das mulheres e a sua relação com o capitalismo. Entretanto, a publicação da obra foi seguida por anos de crise do campo socialista e ascensão do neoliberalismo, dando espaço para as teorias sociais pós-modernas nas discussões sobre gênero, essas com um traço claramente fragmentário, anti-materialista e marcado pela repulsa à crítica da economia política  — características essas estranhas ao projeto unitário da reprodução social.

Após produzir um balanço crítico das teorias feministas predominantes de seu período histórico e da abordagem tradicional dos socialistas sobre A Questão da Mulher, Vogel se coloca à procura da base material da condição de opressão das mulheres sob o capitalismo, propondo uma retomada da teoria da sociedade marxiana, resgatando as categorias centrais d’O Capital, como a mercadoria força de trabalho. A partir disso, a autora de Marxismo e a opressão às mulheres tem como premissa de investigação a produção e reprodução diária e geracional da força de trabalho, questionando como essa mercadoria, que é tida para Marx como uma mercadoria especial, é produzida e reproduzida nas sociedades capitalistas. Vogel chega à conclusão que a força de trabalho é produzida de forma “não-capitalista”, já que o seu lugar privilegiado de produção e reprodução é a família da classe trabalhadora, isso é, a mercadoria força de trabalho é produzida de forma predominante dentro das famílias da classe trabalhadora, mas de forma distinta das demais mercadorias, já que a sua produção não é “supervisionada” diretamente pelo capital, ocorrendo em tempos e espaços além dos imperativos imediatos da produção de valor capitalista. Apesar do avanço da mercantilização das formas de reprodução social — como o crescimento de redes de fast-food —, essa continua sendo a forma predominante de reprodução diária e geracional da força de trabalho, causando pouca despesa para a burguesia, principalmente pelas frações mais precarizadas da classe trabalhadora, que têm a sua reprodução diferenciada em relação às demais e assim rebaixando a “cesta básica” média da população trabalhadora (os meios necessários para a subsistência), colocando como central a contradição entre o aumento da mais-valia dos capitalistas e a piora das condições da vida dos trabalhadores.

Com essa perspectiva, Vogel conclui que a base material da opressão de gênero está situada na relação historicamente constituída entre a condição biológica de corpos sexuados femininos e as relações sociais de produção, combatendo, dessa forma, tanto as perspectivas feministas radicais que situavam a base material da opressão de gênero num patriarcado trans-histórico, colocando uma classe sexuada de mulheres contra uma classe sexuada de homens, como as perspectivas marxistas clássicas, como Engels e Bebel, que a partir de uma visão liberal, entendem a condição da opressão das mulheres numa relação de dependência econômica dos homens, além das operaístas, que compreendem que as mulheres são oprimidas no capitalismo porque seu trabalho em casa produz valor para o capital. Entretanto, ao falar sobre a relação entre biologia e capital, podemos cair no risco de biologizar a opressão de gênero. Por isso, Ferguson e McNally (2017) pontuam que “não é a biologia per se que dita a opressão às mulheres, mas, em dez disso, a dependência do capital dos processos biológicos específicos das mulheres — gravidez, parto, lactação — para garantir a reprodução da classe trabalhadora”. Anos depois da má recepção do livro de Vogel, num recente contexto de intensificação das desigualdades sociais e ascensão do fascismo, ressurge a proposta de criação de uma teoria unitária enquanto um campo teórico-prático que recebeu o nome de Teoria da Reprodução Social, tendo como horizonte a construção, a partir da ortodoxia marxista e crítica à economia política, de uma teoria verdadeiramente marxista da opressão de gênero (assim como as demais opressões). A reedição, em 2013, do livro Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory, além do livro Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentring Oppression, organizado, em 2017, pela Tithi Bhattacharya, fazem parte dos esforços internacionais de colocar no debate público o horizonte socialista da emancipação da classe trabalhadora e da superação das opressões de gênero, raça e sexualidade.

Capítulo 7: A Segunda Internacional

No quarto de século que precedeu a Primeira Guerra Mundial, surgiu um poderoso movimento da classe trabalhadora, representado por sindicatos e partidos socialistas, em quase todos os países europeus. Os novos partidos da classe trabalhadora possuíam o compromisso, mesmo quando abstrato, de transformar eventualmente a sociedade capitalista na sociedade comunista, sem classes. Ao mesmo tempo, lutavam pela extensão do sufrágio aos trabalhadores e, às vezes, às mulheres, participavam de campanhas eleitorais impressionantes e muitas vezes exitosas, e impulsionavam uma legislação para melhorar as condições trabalhistas e proteger as pessoas trabalhadoras de doenças, invalidez e desemprego. Acima de tudo, encorajavam as organizações de trabalhadores a se juntarem em sindicatos para negociar diretamente com o empregador e, se necessário, fazer greve. Um dos principais partidos socialistas era o Partido Socialdemocrata Alemão, o SPD, assumido como o herdeiro do legado de Marx e Engels, líder do movimento sindical alemão e que podia se gabar, no seu auge, de quatro milhões e meio de votos recebidos e mais de um milhão de membros.

Até 1889, a fundação para a Segunda Internacional fora erguida, uma organização que buscava coordenar discussões e ações entre os vários partidos nacionais. Na teoria, o socialismo e o objetivo final de uma sociedade comunista sem classes constituíam as tarefas supremas internacionais, ainda mais com o capitalismo havendo se desenvolvido em um sistema imperialista de escala global. Na prática, os movimentos individuais da classe trabalhadora e os seus partidos responderam a condições de caráter essencialmente nacional, e geralmente marcharam em caminhos separados, às vezes paralelos. Quando a guerra estourou em 1914, tais caminhos divergiram-se. Com algumas importantes exceções, a Internacional se estilhaçou entre exércitos opositores.

Para o movimento socialista, o problema da opressão das mulheres era, em princípio, parte inseparável daquilo que era chamado de “questão social”. Os partidos socialistas divulgavam a assim-chamada questão da mulher em jornais partidários, assim como produziram uma modesta quantidade de literatura teórica e agitativa. Com certa relutância, incorporaram os direitos políticos das mulheres nos seus programas, procuraram construir movimentos de mulheres massificados e encorajavam os sindicatos a organizar as mulheres trabalhadoras. Apesar de fraquezas, o movimento socialista oferecia o mais sólido e aprofundado apoio até então disponível à luta pela igualdade entre os sexos e a libertação das mulheres. Ao mesmo tempo, o exame de alguns exemplos da literatura sobre a questão da mulher sugere que, em grande medida, a Segunda Internacional falhou em trazer luz, e ainda mais em desenvolver, o legado incompleto do trabalho teórico deixado por Marx e Engels. Além disso, ao codificar e, em certa medida, santificar tal legado, o movimento socialista, em realidade, impediu a sua própria capacidade de ir além das ambiguidades herdadas.

Entre os militantes sindicais e partidários que consumiam a literatura socialista, A mulher e o socialismo, do líder socialdemocrata alemão Augusto Bebel, ficou em primeiro lugar em popularidade. Originalmente publicado em 1879, em 1895 já havia passado por 25 edições, e, em 1910, por 50, sem mencionar as suas numerosas traduções. Por anos, A mulher e o socialismo foi o livro mais emprestado das bibliotecas da Alemanha, e continuou a servir como obra-mor, elementar, do socialismo até as primeiras décadas do século XX.

O que levou os trabalhadores e socialistas a se aproximarem tão persistentemente de um livro de quase quinhentas páginas? Em primeiro lugar, Mulher, como o movimento alemão apelidou o livro, era praticamente a única obra na literatura marxista daquele período que dialogava com o desejo imaginativo das pessoas por um cenário detalhado e específico do futuro socialista. Esquadrinhando o passado opressivo e dissecando o presente capitalista, o livro também dedicou seções inteiras ao traçado geral de como poderia ser a vida em uma sociedade socialista. “É seguro afirmar”, observou um jornal bibliotecário em 1910, “que foi deste livro que as massas proletárias derivaram o seu socialismo”. E, anos mais tarde, um ativista do partido afirmou que “para nós, jovens socialistas, o livro de Bebel não era apenas um programa, mas um evangelho”. Até a Revolução Bolchevique abrir a possibilidade de um exemplo na realidade, Mulher ofereceu a mais desenvolvida visão sobre aquilo pelo qual os socialistas estavam lutando[1].

Mas o livro não era somente sobre o socialismo, também discorria sobre as mulheres – A mulher no passado, presente e futuro, como o título da segunda edição anunciava. Para algumas leitoras, ele documentava a angústia da sua própria experiência enquanto mulheres, inspirando “esperança e vitalidade para viver e lutar”. Com essas palavras, Ottilie Baader, uma mulher da classe trabalhadora, relembrou o impacto que o livro teve sobre ela quando o encontrou em 1887, aos 40 anos, vivendo “resignada e sem esperança” sob o jugo de “uma vida de necessidades amargas, excesso de trabalho e moralidade familiar burguesa”:

Embora eu não fosse uma socialdemocrata, tinha amigos que pertenciam ao partido. Através deles obtive a preciosa obra. Li-a por noites a fio. Era o meu próprio destino e o das minhas milhares de irmãs. Nunca, nem na família nem na vida pública eu havia ouvido falar sobre a dor que as mulheres precisam enfrentar. Suas vidas eram ignoradas. O livro de Bebel corajosamente rompeu com o velho secretismo… Eu li o livro não uma, mas dez vezes. Porque tudo era tão novo que pedia um considerável esforço para lidar com a visão de Bebel. Tive que romper com tantas coisas que eu antes considerava como corretas.

Baader juntou-se ao partido e teve um papel ativo na sua vida política[2].

Para alguns militantes do Partido Socialdemocrata Alemão, a publicação de A mulher e o socialismo teve um significado ainda mais profundo. Clara Zetkin, por exemplo, observa em 1896 que o livro de Bebel, independente de quaisquer defeitos, “deve ser julgado de acordo com o tempo em que surgiu. E foi, então, mais que um livro, foi um evento, um feito”, pois providenciou os membros do partido de uma demonstração da relação entre a subordinação das mulheres e o desenvolvimento da sociedade. Zetkin interpreta a publicação da obra de Bebel como um símbolo do compromisso prático do Partido em desenvolver as mulheres como militantes socialistas. “Pela primeira vez”, ela diz, “deste livro surge o lema: Podemos conquistar o futuro somente se conquistarmos as mulheres como companheiras de luta”[3].

Por quantas mais edições Mulher passava, mais Bebel continuadamente revisava e alargava o seu texto. A primeira edição, que totalizava 180 páginas e não era subdividida em capítulos, apareceu logo após a tentativa do governo alemão de destruir o movimento socialista crescente ao banir o SPD e instituir uma censura severa. Apesar do status ilegal do livro, este se esgotou em meses. Não foi até 1883 que Bebel conseguiu encontrar outra editora disposta a republicar o livro, assim como encontrar tempo para o expandir e revisar. Numa tentativa malsucedida de burlar as leis antissocialistas, ele mudou o título da segunda edição de 220 páginas para A mulher no passado, presente e futuro, mudança correspondente à nova estrutura em capítulos. Embora as autoridades hajam banido o livro mesmo assim, foi novamente um sucesso imediato e rapidamente se esgotou, assim como as seis edições subsequentes nos anos seguintes. Em 1890, as leis antissocialistas foram revogadas, e Bebel preparou uma nona edição, retrabalhada de forma considerável, a qual apareceu no início de 1891. Rebatizada A mulher e o socialismo, e expandida para 384 páginas, a nona edição também incorporou, pela primeira vez, partes da análise de Engels de A origem. Foi esta versão de Mulher, repetidamente reimpressa e estendida, em 1895, para 472 páginas na sua 25ª edição, que se tornou o clássico socialista.

O movimento socialista de língua alemã possuía, então, o diferencial de haver produzido duas grandes obras sobre a questão da opressão das mulheres dentro de um espaço de poucos anos: a primeira, A mulher e o socialismo de Bebel, um grande líder do poderoso partido socialista alemão, e, a segunda, A origem de Engels, publicada em 1884 pelo colaborador de Marx, agora uma figura extremamente respeitada, mas, de certa forma, isolada, vivendo em exílio político. Dada a convergência de assuntos e do tema político entre ambos os livros, é de se esperar que a volumosa correspondência entre os autores contenha uma troca substancial acerca das suas visões sobre o tema. Ao invés disso, um estranho silêncio reina, quebrado por alguns poucos comentários casuais. Em 18 de janeiro de 1884, Engels agradece a Bebel por haver lhe enviado uma cópia da segunda edição de Mulher. “Eu o li com grande interesse”, ele diz, “contém muito material valioso. É especialmente lúcido e bom o que você diz acerca do desenvolvimento da indústria na Alemanha”. No dia 6 de junho, ele menciona que A origem está prestes a ser publicada, e promete enviar uma cópia a Bebel. Nos dias 1 e 2 de maio de 1891, ele afirma o seu desejo de elaborar uma nova edição de A origem, que ele realiza em junho. As cartas de Bebel a Engels mencionam o seu próprio livro apenas para alertar dos problemas que apareciam na tradução inglesa, e não se referiam em nenhum momento a A origem. Cartas de Engels a outros correspondentes documentam a concepção, a escrita e a preparação para publicação de A origem durante os primeiros cinco meses de 1884, mas não falam nada sobre a sua opinião acerca da obra de Bebel. A impressão fica de uma polêmica silenciosa entre suas visões diferentes. Apesar da sua relação especial com o movimento socialista, Engels provavelmente jugou como taticamente imprudente algo além da publicação de A origem, e esperava que esta fosse reconhecida como uma abordagem mais acurada da questão da opressão das mulheres[4].

Bebel divide A mulher e o socialismo em três grandes seções, “A mulher no passado”, “A mulher no presente” e “A mulher no futuro”. A maioria das constantes revisões textuais nas edições seguintes consistem em mudanças de natureza factual, feitas para aprofundar ou atualizar os argumentos. Somente a publicação de A origem de Engels fez com que Bebel tivesse que realizar modificações substanciais, a maioria das quais ficaram confinadas à primeira seção. Na primeira versão de “A mulher no passado”, é apresentada uma abundância de evidência etnográfica de uma forma desorganizada, sob a suposição de que “embora as formas da opressão [da mulher] hajam variado, a opressão sempre permaneceu a mesma”.

A obra de Engels fez Bebel perceber que essa afirmação estava equivocada, e, como ele mesmo diz mais tarde, permitiu-o organizar o material histórico sobre uma base correta. Ele reorganizou inteiramente a seção para argumentar que as relações entre os sexos, como todas as relações sociais, “mudaram materialmente o curso anterior do desenvolvimento humano […] em pé de igualdade com o sistema de produção existente, por um lado, e a distribuição dos produtos do trabalho por outro”. Com a ajuda de A origem, ele agora conseguia apresentar o material etnográfico no contexto de um esquema mais sistemático da história do desenvolvimento da família, da propriedade privada, do Estado e do capitalismo. Tais mudanças dificilmente afetaram, porém, a análise de Bebel no resto do livro[5].

A seção A mulher no presente compõe a maior parte de A mulher e o socialismo. Inclui dois longos capítulos sobre a crise do capitalismo da época e sobre a natureza da sociedade socialista (“O Estado e a sociedade”e “A socialização da sociedade”). Esses capítulos, assim como as quatro seções que concluem o livro – “A mulher no futuro”, “Internacionalidade”, “População e superpopulação”, e “Conclusão” – quase não abordam a situação da mulher. Em outras palavras, apesar do seu título e dos seus capítulos iniciais, mais de um terço de A mulher e o socialismo foca na “questão social” maior. Não é surpresa que muitos socialistas leram o livro mais como um texto geral inspiracional do que como um estudo específico da questão da mulher.

Os pontos fortes de A mulher e o socialismo estão precisamente nas suas poderosas acusações da sociedade capitalista e a imagem contrastante apresentada do futuro socialista. Na sequência de detalhes e de anedotas convincentes, Bebel constrói uma massa de informação sobre virtualmente todos os aspectos da subordinação das mulheres e sobre a questão social em geral. Na sociedade capitalista, o casamento e a sexualidade adquiriram um caráter distorcido, não-natural. “O casamento fundado sobre as relações da propriedade burguesa é, mais ou menos, um casamento por compulsão, o que leva a numerosos malefícios no seu curso”. A repressão sexual resulta em enfermidades mentais e suicídio. O sexo sem amor também é prejudicial, pois “o homem não é um animal. A mera satisfação física não é o suficiente”, em que “a mistura dos sexos é um ato puramente mecânico: tal casamento é imoral”. A contraparte do casamento sem amor baseado em coações econômicas é a prostituição, a qual “se torna uma instituição social no mundo capitalista, do mesmo modo que a polícia, os exércitos, a Igreja, a maestria salarial”[6]. A suposta vocação natural das mulheres em serem mães, esposas e provedoras sexuais resulta na sua discriminação como trabalhadoras. Dada a alta taxa de mulheres empregadas, frequentemente sob condições árduas, é fácil para Bebel documentar a hipocrisia de tal preconceito. “Os homens das classes mais altas desdenham das mais baixas; e também o faz todo o sexo [masculino] contra as mulheres. A maioria dos homens veem as mulheres apenas como um artigo para o lucro e o prazer; reconhecê-la como igual vai de encontro aos seus preconceitos. […] Que absurdo, não é, falar em ‘igualdade para todos’ mas procurar manter metade da raça humana fora da alçada!” Bebel insiste recorrentemente que o desenvolvimento industrial tende a libertar as mulheres. Em geral, “a tendência da sociedade é levar as mulheres para fora da estreita esfera da vida estritamente doméstica, até uma total participação na vida pública do povo”. Mas, enquanto sobreviver o capitalismo, as mulheres “sofrem tanto como entidades sociais quanto como entidades sexuais, e é difícil dizer em qual dos dois aspectos elas sofrem mais”[7].

Bebel retrata o socialismo como um feliz paraíso, livre dos conflitos que tipificam a sociedade capitalista e apenas preocupado com o bem-estar do povo. Os seus comentários são muito mais concretos e programáticos que qualquer coisa sugerida por Marx e Engels. Ele imagina uma sociedade na qual todos trabalham e são iguais. Corpos administrativos democráticos substituem o poder de classe organizado no Estado. Casamentos baseados na livre escolha prevalecem, oferecendo a ambos os parceiros uma intimidade solidária, tempo para aproveitar os filhos e oportunidades para uma ampla participação na vida social e política. A sexualidade desenvolve-se livremente, pois “o indivíduo deve ele mesmo cuidar da satisfação de seus próprios instintos. A satisfação do instinto sexual é tanto uma questão privada quanto a satisfação de qualquer outro instinto natural”. As amenidades disponíveis atualmente somente aos poucos privilegiados são estendidas à classe trabalhadora. A educação e a saúde são asseguradas, assim como condições agradáveis de trabalho e moradia. O trabalho doméstico é socializado o tanto quanto possível, por meio de edifícios de apartamentos grandes e similares a hotéis, com aquecimento central, saneamento e eletricidade. Cozinhas centrais, lavanderias e serviços de limpeza tornam os ambientes individuais obsoletos. Afinal de contas, “a pequena cozinha privada é, assim como a oficina do pequeno mestre mecânico, um estágio transicional, um arranjo no qual tempo, força e material são esbanjados e desperdiçados sem sentido”[8]. Ao mesmo tempo, os aspectos mais sombrios da sociedade capitalista desaparecem: a repressão sexual, a prostituição, a deterioração da vida familiar, as condições de trabalho perigosas, os métodos produtivos ineficientes, os bens de baixa qualidade, a divisão entre trabalho mental e manual e entre cidade e campo, e assim por diante. Acima de tudo o indivíduo possui uma abundância de livres escolhas e se desenvolve ao seu potencial máximo em todas as áreas possíveis: trabalho, lazer, sexualidade e amor.

Ao longo de A mulher e o socialismo, Bebel desafia a suposição de que a divisão do trabalho existente entre os sexos representa fenômenos naturais.

O que é natural, ele afirma, é o instinto sexual em si. Realmente, “de todos os impulsos naturais instintivos do ser humano, junto com os de comer e beber, o impulso sexual é o mais forte”. Apesar de possuir uma visão simplista de instinto, o contundente ataque de Bebel à noção de uma eterna e fixa divisão sexual do trabalho destaca-se como uma contribuição política importante para o movimento socialista. Ao menos uma vez um líder socialista confronta o caráter ideológico de afirmações sobre as consequências sociais das diferenças fisiológicas entre os sexos[9].

Com todos os seus pontos fortes, A mulher e o socialismo mesmo assim sofre de um aparato teórico seriamente empobrecido, assim como de vários defeitos políticos. A perspectiva teórica de Bebel na verdade consiste em uma mistura eclética de duas grandes tendências dentro da tradição socialista, tendências as quais o próprio Marx frequentemente enfrentou. Por um lado, A mulher e o socialismo reflete uma visão de socialismo utópico reminiscente de Fourier e outros socialistas do início do século XIX, particularmente na sua visão sobre o desenvolvimento individual em um contexto comunitário. E, por outro lado, o livro exibe uma interpretação reformista mecanicista e incipiente do marxismo, anunciando, assim, o grave reformismo que atravessou a maioria dos partidos na Segunda Internacional, na virada do século. Sem uma base teórica adequada, a discussão de Bebel sobre a opressão e a libertação das mulheres segue um curso errático e, às vezes, contraditório. Do início, ele conceptualiza a questão em termos do livre desenvolvimento do indivíduo feminino. “A assim-chamada ‘questão da mulher’ […] concerne à posição que a mulher deveria ocupar no nosso organismo social; a como ela deve desdobrar as suas potências e faculdades em todas as direções, até ela se tornar um membro completo e útil da sociedade humana, gozando de direitos iguais com todos”. No presente, a sociedade capitalista marca todas as facetas da experiência das mulheres com opressão e desigualdade. “A massa do sexo feminino sofre em dois aspectos: por um lado, a mulher sofre de dependência econômica e social com relação ao homem. Verdadeiramente, tal dependência pode ser aliviada ao posicioná-la formalmente em certa igualdade perante a lei e sob o ponto de vista de direitos [iguais]; mas a dependência não é removida. Por outro lado, a mulher sofre da dependência econômica na qual as mulheres, em geral, e as trabalhadoras, em particular, encontram-se, junto ao trabalhador homem”. Igualdade e libertação são, portanto, sempre questões tanto sociais quanto individuais, e Bebel apressa-se em adicionar que a “solução para a questão da mulher coincide completamente com a solução para a questão social” – incidentalmente colocando a resolução final da questão num futuro distante[10]. Enquanto isso, a classe trabalhadora, e não o movimento feminista burguês, constitui o aliado estratégico natural das mulheres na luta. Além disso, a participação no movimento revolucionário permite com que “relações mais favoráveis entre marido e esposa surjam no meio da classe trabalhadora na medida em que ambos percebem que estão do mesmo lado da corda, e que não há outra maneira de se atingir condições satisfatórias para eles mesmos e sua família – a reforma radical da sociedade que os tornará a todos seres humanos”[11].

Ao considerar a origem social da opressão perversa de que sofrem as mulheres, Bebel se apoia no conceito de dependência. Em geral, ele afirma, “toda a dependência social e opressão [têm] raízes na dependência econômica do oprimido com relação ao opressor”. Assim, a opressão das mulheres é fundamentada na sua dependência dos homens. “Econômica e socialmente não-livre” na sociedade capitalista, por sua vez, a mulher “está destinada a ter no casamento o seu meio de sobrevivência; assim, ela depende do homem e se torna um pedaço de propriedade para ele”. Se a opressão tem a sua base na dependência pessoal, então a libertação no futuro socialista deve envolver a independência individual. “A mulher da futura sociedade é social e economicamente independente; ela não é mais sujeita a nenhum vestígio de domínio ou exploração; ela é livre, está em pé de igualdade com o homem, é senhora do que é seu”[12]. Fora a confusa implicação teórica de que a escravidão caracteriza sistematicamente o capitalismo, visto que toda esposa deve ser “um pedaço de propriedade”, as afirmações anteriores mostram que Bebel perdeu o contato com a essência da orientação marxiana. Para Marx, a luta de classes dentro de um específico modo de produção constitui a base do desenvolvimento social, e a opressão individual tem a sua raiz, portanto, em um conjunto particular de relações sociais de exploração que operam a nível das classes. Bebel, preso nas tendências reformistas de seu tempo, substitui o conceito de exploração de classe de Marx por uma noção vaga e muito menos confrontativa de dependência, particularmente a dependência de um indivíduo por outro. O bem-estar social é medido, assim, pela localização dos indivíduos em uma escala que vai de dependente a independente, não pela natureza das relações sociais de produção em uma dada sociedade. Similarmente, o socialismo é imaginado amplamente em termos da redistribuição de bens e serviços já disponíveis na sociedade capitalista aos indivíduos independentes, ao invés de o ser em termos da reorganização total da produção e das relações sociais. Apesar do compromisso de Bebel com o socialismo, a sua ênfase no desenvolvimento completo do indivíduo na sociedade futura relembra nada mais que o liberalismo, a filosofia política da burguesia do século XIX.

É o foco na dependência individual, vista largamente em isolamento dos mecanismos da ordem do desenvolvimento social como um todo, que mina a perspectiva estratégica de Bebel. Em A mulher e o socialismo, a opressão da mulher é tratada como uma problemática importante, porém teoricamente confusa, e não é surpresa que Bebel apareça com uma variedade de estratégias implicitamente contraditórias. Em primeiro lugar, ele frequentemente insiste que a resolução completa do problema deve ser adiada para um futuro revolucionário, quando ela puder ser completamente tratada em um contexto de resolução da questão social. Mesmo assim, o trabalho prático sobre a questão permanece crítico no presente. Ao mesmo tempo e de certa forma, aquele se torna subsumido na luta do movimento da classe trabalhadora contra o capitalismo. Finalmente, Bebel frequentemente imagina a solução para a assim-chamada questão da mulher em termos da conquista de direitos iguais à participação na sociedade, sem distinção de sexo. Tal abordagem não diferencia os objetivos socialistas do objetivo do feminismo liberal de igualdade entre os sexos na sociedade capitalista. Em resumo, Bebel não conseguiu, apesar de suas melhores intenções enquanto socialista, especificar de maneira suficiente a relação entre a libertação da mulher no futuro comunista e a luta pela igualdade no presente capitalista. Ele conceptualiza a assim-chamada questão da mulher como um assunto que concerne à situação da mulher como indivíduo, por um lado, e às condições sociais gerais, por outro, mas não foi capaz de construir uma ponte sólida entre ambos os níveis de análise.

A popularidade de A mulher e o socialismo reflete a consolidação dentro da Segunda Internacional de uma posição definida sobre a questão da mulher, com a posição ambígua e sutilmente oposta de Engels presente em A origem não se sustentando. Na medida em que o movimento socialista assumiu o problema da opressão da mulher, ele espontaneamente abraçou a análise de Bebel.

Na Inglaterra, por exemplo, Eleanor Marx – a filha mais nova de Marx e uma participante ativa nos movimentos trabalhista e socialista britânicos – escreveu com o seu marido, Edward Aveling, um panfleto intitulado A questão da mulher[13]. Primeiramente publicado em 1886, e republicado em 1887, o popular panfleto tomou a forma de uma revisão especulativa da edição recém-publicada em inglês de Mulher, de Bebel. Suas 16 páginas representaram “uma tentativa de explicar a posição dos socialistas em respeito à questão da mulher”.

Como Mulher de Bebel, A questão da mulher foca nos temas do amor, sexualidade e sentimento humano, ao mesmo tempo em que desafia o caráter supostamente natural do lugar da mulher nas relações social. Em relação à fonte da opressão da mulher na sociedade capitalista, os autores insistem repetidamente que “a base de toda a questão é econômica”, mas dificilmente oferecem qualquer exposição do que querem dizer com isso. Fica implícito, porém, que eles seguem Bebel ao apontar a dependência econômica da mulher com relação ao homem como o problema essencial. Em uma futura sociedade socialista, em contraste, “haverá igualdade para todos, sem distinção de sexo”, e as mulheres serão assim independentes. Igualdade, no sentido de direitos iguais, constitui um tema principal ao longo de A questão da mulher. O panfleto alega, diferente das feministas, que os socialistas vão além do conceito de direitos iguais como uma questão “sentimental ou profissional”, pois eles reconhecem a base econômica da questão da mulher e a impossibilidade de resolvê-la dentro da sociedade capitalista.

A questão da mulher traz algo de novo quando argumenta abertamente que a posição das mulheres em relação aos homens é paralela à dos homens em relação aos capitalistas. “As mulheres são criaturas de uma tirania organizada dos homens, assim como os trabalhadores são as criaturas de uma tirania organizada dos ociosos”. As mulheres “foram expropriadas dos seus direitos como seres humanos, assim como os trabalhadores foram expropriados dos seus direitos como produtores”. Em resumo, a ambos os grupos foi negada a sua liberdade. Com tais formulações, os autores conceptualizam a opressão primordialmente em termos da falta de direitos políticos e da presença de relações hierárquicas de autoridade. Mais que isso, a ideia de que a situação das mulheres é paralela àquela dos trabalhadores sugere uma estratégia de lutas sociais por liberdade paralelas. “Ambas as classes oprimidas, as mulheres e os produtores imediatos, devem entender que a sua emancipação virá de si mesmas. Uma não tem nada que esperar dos homens como um todo, e a outra não tem nada que esperar da classe média como um todo”. Apesar da instância socialista do panfleto, a imagem que este possui da semelhante falta de direitos e de movimentos paralelos de libertação aproxima-se das visões liberais de liberdades puramente políticas na sociedade burguesa.

Essa ênfase explícita no paralelo entre as opressões de classe e de sexo dá um passo lógico para além daqueles em A origem, de Engels, e em Mulher, de Bebel. Em A origem, o paralelismo permanece latente nas séries de dualidades que Engels utiliza para enquadrar seus argumentos: família e sociedade, trabalho doméstico e produção pública, produção de seres humanos e produção dos meios de existência, direitos iguais entre os sexos e igualdade legal entre as classes. Em A mulher e o socialismo, Bebel frequentemente contrapõe a questão da mulher e a questão social, ambiguamente colocando-os o mesmo peso como questões tanto separadas quanto, paradoxalmente, idênticas. Mais que isso, ao argumentar que “as mulheres devem esperar tão pouco apoio dos homens quanto os homens trabalhadores esperam da classe capitalista”, ele implicitamente postula uma estratégia de movimentos sociais paralelos[14]. A noção de um paralelo estratégico entre a luta de classes e a entre os sexos era obviamente corrente na Segunda Internacional. Enquanto A questão da mulher representou uma das primeiras formulações mais claras dessa posição, os teóricos e ativistas socialistas já haviam evidentemente adotado a sua substância, e ela rapidamente se tornou uma marca na herança socialista.

A mulher e o socialismo de Bebel e A questão da mulher dos Avelings podem ser tomados como indicativos de uma visão dominante dentro da Segunda Internacional. Na medida em que o movimento socialista do final do século XIX adotara um trabalho prático em relação à subordinação das mulheres, tais visões geralmente fundamentavam os programas e as táticas desenvolvidas. Com frequência, o movimento oferecia uma perspectiva da opressão das mulheres que combinava, por um lado, promessas visionárias de uma libertação sexual e social individual no distante futuro socialista, e, por outro, um entendimento dos direitos iguais como um objetivo imediato, mas possivelmente burguês. Dessa forma, a Segunda Internacional deixou um legado de teoria e prática sobre a assim-chamada questão da mulher que tendeu a separar a luta por igualdade das tarefas da transformação social revolucionária.


[1] Sobre a popularidade do livro de Bebel acerca de um cenário socialista, conferir Hans-Josf Steinberg, Workers e Libraries in Germany before 1914, in History Workshop, 1976.

[2] Jean Quataert, Reluctant Feminists in German Social Democracy, 1885-1917. Princeton: Princeton University Press, 1979, p. 120.

[3] Sobre a avaliação de Zetkin, conferir Hal Draper, Anne Lipow, Marxist Women versus Bourgeois Feminism, in Miliband and Saville, 1976, pp. 197-198.

[4] A correspondência entre Engels e Bebel aparece em Werner Blumenberg, August Bebels Briefwechsel mit Friedrich Engels, Haia: Mouton, 1965, nos. 58, 59, 62, 80, 157, 280, 298. As cartas de Engels a outros correspondentes estão listadas em Lawrence Krader, The Ethnological Notebooks of Karl Marx, Assen: Van Gorcum, 1972, pp. 388-390. Ver também a discussão acerca de A origem de Engels no capítulo 6.

[5] Para a história das edições anteriores de A mulher e o socialismo, conferir Vorrede zur neunten Auflage de Bebel, datado de 24 de dezembro de 1890, em August Bebel, Die Frau und der Sozialismus, Stuttgart: Dietz Verlag, 1891. A discussão seguinte cita as traduções, amplamente disponíveis em inglês, da segunda e da 33ª edição, correspondendo, respectivamente, a uma edição mais antiga e ao texto clássico de A mulher e o socialismo. As citações neste parágrafo são de August Bebel, Woman in the Past, Present and Future, Nova York: AMS Press, 1976, p. 18, e August Bebel, Woman under Socialism, Nova York: Schocken Books, 1971, p. 10. Para uma avaliação do trabalho de Bebel, conferir Richard Evans, The Feminists: Women’s Emancipation Movements in Europe, America and Australasia 1840-1920, Nova York: Barnes and Noble, 1977, pp. 156-159.

[6] August Bebel, Woman under Socialism, Nova York: Schocken Books, 1971, pp. 85, 86, 146.

[7] Ibid., pp. 192, 187, 79.

[8] Ibid., pp. 343, 338-339. Sobre casas sem cozinhas, conferir Dolores Hayden, The Grand Domestic Revolution: A History of Feminist Designs for American Homes, Neighborhoods, and Cities, Cambridge: M.I.T. Press, 1981.

[9] August Bebel, Woman under Socialism, Nova York: Schocken Books, 1971, p. 79; ver também pp. 79-88, 182-215.

[10] Ibid., pp. 1, 4, 5.

[11] Ibid., p. 115; ver também pp. 89-90 e 233.

[12] Ibid., pp. 9, 120, 343.

[13] Edward Aveling, Eleanor Aveling Marx, The Woman Question, in Marxism Today, ed. 16, 1972.

[14] August Bebel, Woman under Socialism, Nova York: Schocken Books, 1971, p. 121.

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