
O texto que segue foi escrito por Mariela Castro Espín, diretora do Centro Nacional Educação Sexual (CENESEX), em Cuba, para a XIII edição das Jornadas Cubanas contra a Homofobia e a Transfobia (2020). Trata-se de um balanço sobre a experiência cubana e a forma como lideram com as questões relativas aos direitos sexuais e de gênero, com o objetivo de apresentar o CENESEX e as Jornadas.
Por Mariela Castro Espín*
A revolução de 1959 significou a vitória da soberania nacional cubana, a implementação de um projeto de justiça e equidade social, o começo das transformações mais profundas e radicais na história da nação e sua cultura.
Um acontecimento de tal magnitude não poderia, senão, modificar por inteiro as políticas em relação ao gênero e às sexualidades. Houve um processo de metamorfose cultural complexo, propiciador de confrontos e diálogos entre gerações, padrões culturais, classes e estratos sociais, em que as mulheres temos sido beneficiárias protagonistas e promotoras.
A erosão do patriarcado como paradigma de poder
Neste cenário de ampla participação popular se gestaram as primeiras ações de implementação das transformações políticas, econômicas e sociais que modificaram o papel dos homens e das mulheres na sociedade e na família, nas suas relações de casal, nas sexualidades, nas relações intergeracionais.
Entre 1959 e 1961, o jovem Estado Revolucionário aprovou leis muito significativas que respondiam a velhos anseios frustrados pela politicagem dos partidos tradicionais, corrupção e pelo servilismo à poderosa nação do norte. Entre elas, ressalta-se a Lei Fundamental da República de Cuba, aprovada em 7 de fevereiro de 1959, em que se estabeleceu a igualdade de salários entre homens e mulheres.
Em 23 de agosto de 1960, constituiu-se oficialmente a Federação de Mulheres Cubanas (FMC) como movimento organizado e massivo das mulheres na sociedade civil; desde então, articulou-se um projeto próprio, de empoderamento como sujeitos de direito, com profundo impacto em toda a sociedade, na política e na cultura.
Simultaneamente, desenvolveram-se diferentes iniciativas de ampla participação cidadã, como as mobilizações populares contra as agressões terroristas organizadas pelo governo dos Estados Unidos da América; as mulheres chegaram às suas casas vestidas de milicianas e as suas imagens nesse novo papel social se tornaram cotidianas.
A ampla incorporação das mulheres ao trabalho e a tudo o que ocorria publicamente teve grande impacto na sexualidade (Núñez, 2001). A nova condição social das mulheres contribuiu na mudança do padrão reprodutivo de seis filhos(as) por mulher a menos de um filho ou filha por mulher (Alfonso, 2006), embora a última Pesquisa Nacional de Fecundidade informa que o ideal reprodutivo da mulher é de 2,13, e o dos homens 2,31.Como resultado do trabalho conjunto entre a FMC e o novo Sistema Nacional de Saúde Pública. Em 1964, foi estabelecido o Programa Nacional de Planejamento Familiar e, em 1965, foi institucionalizada a interrupção voluntária da gravidez, como um serviço gratuito, realizado por profissionais e em instituições de saúde pública.
Isso foi feito com o objetivo de diminuir a mortalidade materna, assim como o de promover e garantir o direito das mulheres de tomarem suas próprias decisões sobre o seu corpo.
Tais decisões, junto a outros programas nacionais, contribuíram para diminuir a mortalidade materna, que, em 1959, era de 120 a cada 100 mil crianças nascidas vivas, e já em 1966 se reduziu para 60. O monitoramento rigoroso deste indicador, para diminuir as suas causas previsíveis, constitui uma tarefa permanente e uma das mais importantes do Programa Materno Infantil do Ministério de Saúde Pública (MINSAP), que encerrou o ano de 2019 com uma taxa de 36 mortes a cada 100 mil crianças nascidas vivas.
Continuando os seus mecanismos particulares de participação, em 1972, a FMC estabeleceu um grupo de trabalho multidisciplinar e intersetorial para gestar e desenvolver um Programa Nacional de Educação Sexual.
Com esta iniciativa, pretendia-se responder a uma das reivindicações expressas pelas mulheres nas suas plenárias anuais: preparar-se em educação sexual para orientar melhor suas filhas e filhos, e evitar, assim, que estes sofressem as mesmas adversidades que elas. Sob tal premissa, nasceu o Grupo Nacional de Trabalho de Educação Sexual.
A importância da educação sexual foi reconhecida no Segundo Congresso da FMC, em 1974, e no Primeiro Congresso do Partido Comunista de Cuba, em 1975. Desde então, a educação da sexualidade ficou expressa na política do Estado, que reconheceu, na família e na escola, as instituições de maior responsabilidade.
As políticas dos anos 1960 se expressaram em novas leis durante a década de 1970, entre as quais se destaca o Código de Família aprovado em 1975, como resultado dum amplo processo de consulta popular. Considerado o mais avançado para a sua época em todo o continente, reconhecia o direito de homens e mulheres a uma sexualidade plena e a compartilhar as mesmas responsabilidades domésticas e educativas.
Como consequência da política desenvolvida durante os anos 1970, Cuba foi o primeiro país a assinar, e o segundo a ratificar, os compromissos governamentais perante a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1979).

O respeito à livre orientação sexual e identidades de gênero
A cultura cubana tem uma forte herança hispano-africana patriarcal, com uma longa tradição homofóbica, um modelo de dominação imposto pelo sistema colonial espanhol e sua religião oficial, acompanhado de uma produção científica universal que estigmatizava a homossexualidade.
Quando triunfa a Revolução, no mundo todo as ciências médicas, psicológicas, sociais e jurídicas se pronunciavam contra a homossexualidade, e a consideravam um exemplo de doença, loucura, decadência moral e desvio das normas sociais.
Infelizmente, a permanência da homofobia institucionalizada nas primeiras décadas da Revolução não foi analisada em toda a sua complexidade. Essa situação é aproveitada por quem somente tem visto nisto uma oportunidade para lucrar dentro do bem financiado mercado de ataques contra Cuba. Diante disso, resulta-se imprescindível a análise crítica, a partir das nossas instituições, das práticas incoerentes com o espírito humanista do processo revolucionário.
David Carter (2004), em seu livro “Stonewall, os protestos que incendiaram a revolução gay”, escreveu que, em 1961, as leis que penalizavam a homossexualidade nos Estados Unidos eram mais duras que as aplicadas em Cuba, Rússia ou Alemanha Oriental, países usualmente criticados pelo governo estadunidense pelos seus “métodos despóticos” (Carter D., p. 16).
Compreender a situação atual das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexuais (LGBTI+) em Cuba, e a necessidade de colocar sua atenção como objeto de política, exige se situar na evolução histórica do tema na agenda social da Revolução Cubana.
O Grupo Nacional de Trabalho de Educação Sexual (GNTES, 1972), liderado pela FMC, deu lugar ao Centro Nacional de Educação Sexual (CENESEX) em 1988, e, desde então, se subordina ao MINSAP. O CENESEX tem a missão de contribuir para o desenvolvimento da Educação Integral da Sexualidade, da saúde sexual e o reconhecimento e garantia dos direitos sexuais de toda a população. Para isso, desenvolve estratégias educacionais e comunicacionais que incluem diferentes campanhas nacionais de bem público.
Um impacto significativo na mobilização da consciência social da população cubana tem sido a iniciativa de celebrar o Dia Internacional contra a Homofobia e a Transfobia, desde 17 de maio de 2007.
Acolhemos, assim, a proposta do professor franco-caribenho, Louis-Georges Tin, de colocar nas efemérides nacionais a celebração do dia em que a Organização Mundial da Saúde aprovou a despatologização da homossexualidade, um dos motivos que contribui para o seu estigma e discriminação, sem fundamentos científicos. Isso aconteceu em 17 de maio de 1990.
Desde 2008, dedicamos todo o mês de maio a desenvolver ações educativas e de comunicação que promovem o respeito à livre orientação sexual e identidades de gênero, como exercício de justiça e equidade social, com o nome de Jornadas Cubanas contra a Homofobia e a Transfobia.
Tais jornadas são coordenadas pelo CENESEX, através do MINSAP, junto a outras instituições do Estado, do governo e do indispensável apoio do Partido Comunista de Cuba – PCC em seus distintos níveis. São dedicadas campanhas aos espaços familiar, escolar, laboral e, mais recentemente, ao reconhecimento de todos os direitos para todas as pessoas, sem discriminação por suas orientações sexuais e identidades de gênero.
As Jornadas Cubanas contra a Homofobia e a Transfobia impactaram, sem dúvida, a visão de país aprovada no 7º Congresso do Partido Comunista de Cuba (2016) e na Assembleia Nacional do Poder Popular (2017) depois de um rigoroso processo de consulta popular.
A Conceituação do Modelo Econômico e Social Cubano de Desenvolvimento Socialista e o Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social até 2030 fazem menção expressa à necessidade de se enfrentar toda forma de discriminação, incluindo a motivada por orientação sexual e identidade de gênero.
Em total sintonia com isso, desde 2019, o nosso texto constitucional reconhece os direitos sexuais e reprodutivos, proíbe a discriminação contra pessoas com sexualidades não-heteronormativas, protege a diversidade familiar e regula, de maneira clara, o matrimônio como uma instituição jurídica a qual todas as pessoas podem acessar sem nenhum tipo de discriminação.
Claro que há um longo caminho para percorrer. Por isso, educamos para o amor e a convivência respeitosa, não para a perpetuação de relações de dominação nem de violência. Educamos nos princípios humanistas e democráticos que se inspiram no paradigma emancipador do socialismo, na liberdade como complexa responsabilidade individual e coletiva. Seguiremos trabalhando até alcançar toda a justiça.
Este texto foi publicado originalmente no Granma, jornal oficial do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba, em espanhol, e posteriormente traduzido (em 19/05/2020). Para acessar a tradução oficial, clique aqui.

* Mariela Castro Espín é diretora do Centro Nacional de Educação Sexual (CENESEX), em Cuba, e uma militante pelos direitos da população LGBT na ilha, tendo nove livros publicados. É filha de Raúl Castro, ex-presidente cubano.