Notas sobre um cenário trágico: pandemia, capitalismo e saúde mental da população LGBT brasileira

Coletivo LGBT Comunista SP

Após um ano de pandemia, a realidade fria dos números nos mostra que andamos para trás. Não conseguimos controlar a pandemia nem garantir condições mínimas para a vida da população trabalhadora. Para piorar, houve aumento da concentração de renda e da quantidade de pessoas que vivem na miséria. Condições que refletem diretamente na saúde da população trabalhadora.

Se entendermos que saúde significa estar vivo e em condição de realizarmos não apenas nosso trabalho, mas também nossos hobbies, nossos sonhos e desejos e tudo o que a humanidade já estabeleceu como possibilidade, torna-se muito claro que saúde não é apenas o bem estar físico e psicológico da pessoa, mas está relacionada com a forma como a pessoa consegue viver sua vida, quanto tempo trabalha por dia, quanto recebe em troca pela venda de sua força de trabalho, quanto tempo de lazer dispõe, quais habilidades consegue desenvolver, qual o acesso que a pessoa tem a tudo que a humanidade já produziu e acumulou de conhecimento. [1] O que queremos dizer é que a saúde, a possibilidade de viver por todo o tempo e na qualidade que caracteriza o gênero humano, depende do acesso ao produto da sociedade e esse acesso se dá para cada grupo de diferentes formas, na dependência de como se organiza a vida em cada sociedade.

A pesquisa “Diagnóstico LGBT+ na pandemia”, co-organizada pelo #VoteLGBT em parceria com Box1824 [2], mostra que 28% da população LGBT já foi diagnosticada com depressão, sendo que desta, 47% das pessoas foram classificadas com o risco de depressão mais severa. A comparação com a população geral brasileira, na qual 5,8% são diagnosticados com depressão [3], revela que mesmo antes da pandemia uma série de fatores como a não aceitação por familiares e amigos próximos, preconceito e dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho provocam efeitos negativos na saúde mental desta população.

Com a pandemia, 42,72% das LGBTs relataram o aumento de problemas e dificuldades relacionadas à saúde mental. Procuramos compreender neste texto quais são os fatores que contribuem para esta estatística.

Em um contexto onde 40% da população LGBT em geral, e 53,35% da população trans em específico, não consegue sobreviver sem renda por um período superior a um mês, a exclusão do mercado de trabalho, o desmonte dos direito trabalhistas e a ausência da individualização das políticas públicas voltadas ao auxílio às necessidades básica, ou seja, a não compreensão das especificidades de cada grupo da população brasileira, se configura como relevante fator de impacto direto na saúde mental.

Simultaneamente, o afastamento das redes de apoio se configura também como um fator prejudicial central. Ainda segundo o “Diagnóstico LGBT+ na pandemia”, 16,58% das LGBTs está sob novas regras de convívio social, 11,74% declara estar na solidão e 10,91% está no convívio familiar. Apesar da rejeição familiar e social serem questões marcantes entre as pessoas dessa população, a necessidade de isolamento associada à falta de renda em muitos casos leva à convivência forçada em dinâmicas familiares marcadas pelo preconceito.

Distante de pura incompetência ou negligência, a análise das ações do Governo Federal diante da pandemia revela uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus” [4]. Através do estudo e sistematização dos atos normativos da união, das propagandas contra a saúde pública e dos atos de obstrução às respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia, a pesquisa “Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil” [5] traça um panorama sobre a violação do direito à vida e à saúde na administração da pandemia pelo Governo Bolsonaro. No que tange à população LGBT e outros grupos sociais minoritários, historicamente negligenciados pelas políticas públicas, a intencionalidade na marginalização e a perseguição institucional se torna ainda mais clara.

A defasagem entre o auxílio emergencial e as necessidades básicas da vida cotidiana, somada às controversas declarações de Bolsonaro (como quando o país acumulava 100.477 mortes e o presidente declarou “Lamento as mortes. Morre gente todo dia, de uma série de causas. É a vida” [4]), são indicadores de que a administração da crise brasileira não tem como compromisso principal a manutenção da vida, mas sim a manutenção dos interesses da elite econômica e das políticas neoliberais. Desta forma, questões como provisão de abrigo e condições de manutenção da qualidade de vida à população não são pautadas intencionalmente pela administração pública, fator relevantemente crítico à população LGBT, constantemente atacada por Bolsonaro e na qual 54% de nós afirmam necessitar de auxílio psicológico durante o período de isolamento.

O processo de fragilização das instituições que nasce com a “ponte para o futuro” do Governo Michel Temer recebeu impulso com a política neoliberal radicalizada do começo do Governo Bolsonaro/Mourão e hoje se coloca como barreira clara para a utilização de instrumentos necessários para o combate efetivo à pandemia [6]. Não apenas por uma impossibilidade jurídica, causada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) ou pelo Teto de Gastos (Emenda Constitucional de nº 95 ou PEC da morte) [5], mas por insistir em políticas de austeridade e em um breve retorno às reformas estruturais.

Finalmente, numa sociedade de classes, num mesmo momento histórico, o modo de viver, adoecer e morrer das diferentes classes é bastante diverso. Numa sociedade como a nossa, por exemplo, já se sabe que a expectativa de vida dentro da cidade de São Paulo é diferente de acordo com o bairro em que você mora. Enquanto na Cidade Tiradentes temos uma expectativa de 57 anos, no bairro Moema temos uma expectativa de 80 anos. Essa diferença é reflexo direto das condições de trabalho, moradia, capacidade de suprir necessidades (da mente e do “corpo”). Ao mesmo tempo, temos particularidades dentro da população trabalhadora. Certo segmento dessa população, por sofrer assédio no trabalho, por ficar com os trabalhos com menos direitos, ou mesmo por não conseguir ingressar no mercado de trabalho formal, pode apresentar maior taxa de sofrimento e desgaste físico e mental, como mostrado no texto.

Entendendo que a vida humana é determinada socialmente em todas as suas dimensões, inclusive a da saúde, temos o dever histórico de continuar lutando e resistindo para termos melhores condições de vida e de saúde. É fundamental a luta contra o Estado mínimo e por uma política de retomada e ampliação de direitos à população trabalhadora, mas sem cair na ilusão de que, dentro do modo de produção capitalista, a conquista de quaisquer desses direitos será permanente – o último período nos mostra o oposto. Neste sentido, não podemos tirar do horizonte e de cada uma de nossas ações a estratégia pela superação da sociedade de classes, rumo ao socialismo.

Publicação originalmente publicada aqui, em 24/03/2021.

NOTAS

[1] ALBUQUERQUE, Guilherme. “A produção social do humano e a determinação da saúde e da doença”.

[2] Pesquisa “Diagnóstico LGBT+ na Pandemia” elaborada pelo coletivo #VoteLGBT em colaboração com o escritório Box1824. Realizada entre 28/04 e 15/05 de 2020, teve participação de 9521 LGBT+ em todos os estados do país. Disponível em: https://static1.squarespace.com/…/%5Bvote+lgbt+%2B…

[3] World health Organization (WHO). Depression and other common mental disorders: Global Health Estimates. 7 abr 2017. Disponível em: http://www.who.int/…/prevalence_global_health…/en/. Acesso em: 15 mar 2021.

[4] BRUM, Eliane. Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”. EL PAÍS, São Paulo, 21 jan 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/…/pesquisa-revela-que… Acesso em: 24 fev 2021.

[5] Centro De Estudos E Pesquisas De Direito Sanitário e Conectas Direitos Humanos. Boletim Direitos na pandemia n°10. Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à covid-19 no Brasil. São Paulo, 20 jan 2021. Disponível em: https://www.conectas.org/…/Boletim_Direitos-na-Pandemia…. Acessado em: 10 mar 2021.

[6] DWECK, Esther. Os desafios da pandemia em meio ao desmonte neoliberal no país. NEXO, São Paulo, 4 mai 2020. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/…/Os-desafios-da-pandemia…. Acesso em: 15 mar 2021.

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