O HIV sob uma ótica marxista

Coletivo LGBT Comunista – RJ

O mês de dezembro é conhecido por ser o mês de prevenção ao HIV/AIDS. Muito da memória do que foi a epidemia nos anos 80 e 90 se perdeu para as gerações mais novas, em parte por conta dos avanços obtidos através da luta da sociedade civil já no final do milênio, em parte pelo avanço dos remédios e do tratamento, mas também por não se falar do vírus que ainda agrava a marginalização de diversas pessoas e grupos sociais. Nós, enquanto comunistas, temos o dever de nos debruçar sobre este tema, principalmente a partir de três grandes eixos:

  1. Grande parte dos males do HIV são causados pelo estigma socialmente construído.
  2. A questão do HIV/AIDS deve ser tratada de um ponto de vista interseccional entre classe, gênero, raça e sexualidade.
  3. O neoliberalismo agrava e muito a epidemia.

Primeiramente, é necessário considerar como se construiu a visão sobre quem porta o HIV. Enquanto uma infecção sexualmente transmissível (IST), o HIV surgiu em uma época onde estouravam movimentos por maior liberdade sexual que desafiavam algumas noções de família que se construíram na sociedade capitalista ocidental ao longo da modernidade. Assim, como disse Cazuza”, “a AIDS caiu como uma luva para ser o modelinho perfeito da direita e da Igreja”, e foi logo associada à promiscuidade; mais do que isso, a doença foi utilizada como uma ferramenta de controle social através do medo, buscando diminuir comportamentos tidos como “desviantes” ou “imorais”, justamente aqueles de populações já marginalizadas. Em certo ponto, as/os pacientes da AIDS eram separadas discursivamente entre as merecedoras (pessoas LGBT) e as vítimas (crianças e hemofílicos, principalmente).

Vale lembrar que o HIV nunca foi um vírus associado apenas a pessoas LGBT. Um dos grupos que mais o contraíram, por exemplo, foi o de mulheres heterossexuais religiosas casadas. Mas aí que entra a construção do estigma, que não vem da condição em si, mas é imposta para as pessoas que tenham tal condição. E nisso é inegável que o estigma, enquanto ferramenta discursiva, surge como forma de potencializar os diversos mecanismos de exclusão da sociedade capitalista, como o racismo, misoginia, LGBTfobia, etc., mecanismos sem os quais o capitalismo não se sustenta.

A dialética desta questão leva a compreender o movimento de vai e vem das forças sociais. Assim, enquanto o HIV potencializou a exclusão das pessoas LGBT, também reforçou a centralidade dos homens gays (brancos) dentro do movimento justamente por eles estarem mais bem posicionados na sociedade patriarcal e racista. Daí, isso gerou também a midiatização da epidemia como “doença gay”, inclusive apagando os diversos movimentos de pessoas trans, lésbicas e bissexuais para combater a AIDS, como as casas de acolhimento. Esse movimento de apagamento, dentro de uma sociedade em que já relega as mulheres para uma posição subalterna, atrasou as pesquisas dos efeitos da AIDS em corpos femininos (cis e trans) em mais de uma década – uma das reivindicações de mulheres portadoras, por exemplo, era que as pesquisas determinassem se o vírus era transmissível pela amamentação. Não é possível compreender a epidemia sem compreender as relações de tensão estabelecidas em todos estes diversos movimentos e como eles se relacionam no contexto mais abrangente da luta de classes.

Outros exemplos desta profunda intersecção são os efeitos da perda de emprego, ainda comum para quem se descobre portador, ou mesmo o índice de desenvolvimento do HIV em AIDS ter aumentado para pessoas negras e pardas e diminuído para pessoas brancas. Mesmo nas ONGs é possível perceber como a classe social, por exemplo, é um dos principais fatores de atuação da militância, uma vez que pessoas mais pobres não terão tempo de fazer as diversas tarefas por conta do acúmulo de empregos. O impacto do HIV depende do lugar social que o portador ou a portadora ocupa, especialmente em um ambiente onde o acesso à informação ainda é escasso.

Todos estes efeitos, terríveis por si só, são agravados pelo neoliberalismo, de duas formas diferentes. Primeiramente, por conta do individualismo extremo que é vendido, uma noção de “eu” que leva invariavelmente à solidão para pessoas que sofrem com o estigma social. Enquanto portadoras, se sentem sozinhas. Pelo contrário, diversos relatos apontam que só passaram a ressignificação a sua condição de forma coletiva, de forma coletivamente humana, via organização social, via troca de experiências, via a luta política pela sociedade civil. Esta é uma lição que nós, comunistas, conhecemos bem, e sabemos que nossa força reside justamente no coletivo que abriga uma ampla diversidade de formas de estar no mundo diferentes – vale lembrar que mesmo o chamado “coletivo” neoliberal, as “tribos”, não passam de agrupamentos pela semelhança, perdendo de vista a principal característica coletiva: a possibilidade de encontrar convergências através da diferença, de construir laços de camaradagem com pessoas diferentes de nós mesmos.

Além dos efeitos psíquicos, o neoliberalismo também aumenta a desigualdade social, e prega a austeridade que leva à falta de tratamento, de campanhas de prevenção, de qualquer financiamento para se combater de forma real a AIDS. Por isso dizemos que:

NÃO É POSSÍVEL FALAR DE PREVENÇÃO AO HIV SEM FALAR DE FIM DO TETO DE GASTOS!

NÃO É POSSÍVEL FALAR DE PREVENÇÃO AO HIV SEM DEFENDER O SUS!

Uma das primeiras medidas de Luís Mandetta ao assumir o Ministério da Saúde foi apagar da plataforma todas as informações de prevenção à AIDS, embora depois ele tenha se vendido falsamente como um técnico “pró-ciência” posteriormente. O governo Bolsonaro praticamente zerou todos os investimentos à prevenção do HIV nos quatro anos que ele durou, e já faltam remédios para diversos pacientes que são apenas portadores, remédios estes que impedem o desenvolvimento da AIDS. O atual governo de transição de Lula e Alckmin, até o momento, não disse uma só palavra de reverter este quadro.

É fundamental que nós transformemos a questão do HIV em uma questão de saúde, e nesse sentido esta pauta também é uma pauta que permite avanços em todas lutas pelo direito à saúde pública. É necessário que façamos a informação chegar de forma cada vez mais capilar. É importante que defendamos a ciência, uma vez que momentos de maior fragilidade ao tecido social permitem o fortalecimento de discursos anticientíficos e reacionários que já estão na surdina o tempo todo. Como uma epidemia que já dura décadas, é fundamental que ao menos nós, comunistas, politizemos esta questão, trazendo a memória do que foram as décadas anteriores e de como todo avanço ocorreu por muita organização social. E que nós lembremos que enquanto durar o capitalismo, nenhum destes avanços é garantido.

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