
Texto traduzido pelo militante Felipe Lakatos, tendo sido publicado originalmente pela alQaws aqui.
A alQaws se define assim em seu site oficial: “A alQaws para a Diversidade Sexual e de Gênero na Sociedade Palestina (alQaws for Sexual and Gender Diversity in Palestinian Society), uma organização da sociedade civil fundada no ativismo de base, está na frente de batalha de uma mudança social e cultural vibrante na Palestina, construindo comunidades queer e promovendo novas ideias sobre o papel da diversidade de gênero e sexual no ativismo político, nas instituições da sociedade civil, na mídia e na vida cotidiana”.
Há mais de uma década, ativistas palestinos adotaram o termo “pinkwashing” para descrever como o Estado de Israel e os seus apoiadores usam a linguagem dos direitos gays e trans para desviar a atenção internacional da opressão dos palestinos. Guias turísticos israelenses e vídeos promocionais propagandeiam as praias de Tel Aviv como um destino gay-friendly [hospedeiro à população LGBT, em especial a de homossexuais] – e escondem a realidade de que os turistas festeiros estão dançando sobre as ruínas de vilas palestinas vítimas de limpeza étnica. A inclusão aberta de oficiais gays no exército de ocupação israelense é usado como prova de mentalidade progressiva, mas para os palestinos a sexualidade do soldado num checkpoint¹ faz pouca diferença. Todos carregam as mesmas armas, vestem as mesmas botas e mantêm o mesmo regime colonial.
O pinkwashing surgiu como parte de um esforço propagandístico internacional, o qual, em vistas do crescente movimento de solidariedade à Palestina, procura rotular Israel como um Estado “moderno” e liberal. Ao promover cidades como Tel Aviv como destinos turísticos gays, o ministério de relações internacionais de Israel busca ganhar o apoio de comunidades queer² ao redor do mundo e prevenir conexões internacionais com a luta palestina. Crucialmente a isso, a promoção de uma “Israel gay-friendly” depende da representação dos palestinos (e árabes, de forma mais geral) como o exato oposto: sexualmente regressivos e, portanto, indignos de solidariedade. Tais estereótipos encontram-se na longa história de tentativas de demonizar as narrativas e resistências palestinas usando estratégias políticas ancoradas em racismo anti-árabe e islamofobia.
Os primeiros anos de ativismo anti-pinkwashing focaram-se na identificação e no combate dos esforços de esconder a realidade do colonialismo e apartheid israelenses atrás duma cortina de fumaça simpatizante da causa queer. Porém, quanto mais avançavam as campanhas e teorias anti-pinkwashing, mais os ativistas da alQaws percebiam que o termo “propaganda” não conseguia capturar o verdadeiro escopo do pinkwashing. Enquanto o pinkwashing frequentemente aparece ao mundo como uma estratégia de marketing global, é, no fim das contas, uma expressão de políticas sexuais e de gênero israelenses bem mais profundas e pertencente às bases ideológicas do sionismo.
Pinkwashing é o sintoma, colonialismo é a doença nerval. Reconhecer o pinkwashing como violência colonial pode nos ajudar a entender como Israel divide, oprime e invisibiliza os palestinos com base no gênero e na sexualidade.
O colonialismo israelense funciona destruindo e eliminando comunidades palestinas, seja pela violência militar da ocupação e da pilhagem, pelo regime legal de apartheid ou pela negação do direito de retorno aos refugiados. Ainda assim, ele também divide a Palestina internamente e psicologicamente, nos reinos pessoais da autopercepção e da identificação coletiva. Para compreendermos a natureza dessa luta, precisamos também nos entendermos a nós mesmos, e como a colonização impacta as nossas vidas individuais.
O pinkwashing força a ideia racista de que a diversidade sexual e de gênero não são naturais, mas sim estranhos à sociedade palestina. Quando essa ideia é internalizada dentro de comunidades palestinas, ela aliena palestinos queer e não-conformantes de gênero e os isola como grupo social. Tais pressões sociais levam LGBTs palestinas a abandonarem alguma parte da sua identidade ou experiência: só podemos ser aceitas como LGBTs e não como palestinas, ou só como palestinas mas não como LGBTs. Os efeitos destrutivos do pinkwashing internalizado reverberam pelas comunidades palestinas, reforçando mitos que associam palestinas LGBTs a colaboradoras israelenses ou informantes de uma narrativa ocidentalizada e propagando sentimentos de desesperança que estreitam a nossa imaginação política.
O pinkwashing também forma um cenário desempoderador: se as opressões sexual e de gênero são parte essencial do que significa ser palestino, então não há maneira de enfrentá-las e modificá-las. Sob nenhum aspecto, portanto, as LGBTs palestinas são encaradas como agentes radicais de transformação dentro da nossa própria sociedade. Ao invés disso, o pinkwashing compele as LGBTs palestinas a interpretarem as suas experiências e dores através das lentes da vitimização e da falta de poder, o que contribui para um maior desempoderamento e supressão de todos os palestinos à dominação colonial.
Quando palestinas LGBTs são referenciadas por defensores de Israel, é apenas para pintar um retrato de vitimização individual que reforça um binário entre um atraso palestino e um progressismo israelense. Tais retratos sugerem que a sociedade palestina sofre de uma homofobia patológica, e que nenhuma voz dissidente conseguiria sobreviver por muito tempo nela. O pinkwashing diz às palestinas LGBTs que a libertação pessoal (e nunca coletiva) só pode ser encontrada escapando de suas comunidades e correndo aos braços de seus colonizadores. O mito pervasivo de palestinos encontrando um “refúgio LGBT” em cidades israelenses não corresponde às políticas atuais do Estado colonial, que são embasadas na exclusão e destruição de palestinos – queers, trans ou o que sejam. A fantasia do humanitarismo israelense cai por terra assim que a situação colonial é levada em consideração. Não há nenhum “portão rosa” nos muros do apartheid.
Ainda assim, mitos do “salvador israelense” persistem, apesar de suas óbvias contradições, pois o pinkwashing trabalha incessantemente para apagar a presença de seus mais formidáveis oponentes: um movimento LGBT palestino que intransigentemente funde a luta contra o colonialismo com a luta contra a opressão patriarcal e capitalista, e que se enxerga como parte integral da sociedade palestina e da luta anti-colonial. O apagamento sistemático de vozes LGBTs progressivas e politizadas serve aos interesses do poder colonial e sua narrativa.
A alQaws enfatiza o pinkwashing como violência colonial para revelar as políticas sexuais e de gênero mais profundas de Israel. Ao rejeitar a fragmentação colonial e não permitir que uma divisão seja feita entre o sujeito e a sociedade, somos capazes de combater a nossa exclusão e reclamar um lugar para nós mesmos em nossas comunidades e na nossa luta. No trabalho da alQaws, ser queer palestino não é meramente uma identidade, mas uma tomada de posição radical da mobilização política e descolonização.
O que isso tudo significa para os ativistas solidários internacionais e para os palestinos organizando-se na diáspora? Este documento foi concebido na esperança de reorientar o trabalho anti-pinkwashing na centralização de vozes LGBTs palestinas e incorporar táticas que foram desenvolvidas ao longo de duas décadas de organização de base na Palestina. Em círculos ativistas baseados no Norte Global, o pinkwashing tem sido amplamente encarado como uma estratégia de propaganda e enfrentado com iniciativas de campanhas anti-pinkwashing. Ao traçar a análise do pinkwashing como violência colonial, os ativistas poderão não apenas melhor combater as instâncias da propaganda israelense, mas também situar o pinkwashing dentro de seu contexto maior de colonização e nos permitirá fazer conexões com outras formas de colonialismo e opressão sexual e de gênero. A ação anti-pinkwashing é conduzida no espírito do internacionalismo e anti-imperialismo, mas também temos esperanças de que tal recurso esteja na organização dinâmica local e evolua de acordo com o contexto em que é lido e utilizado.
NOTAS DA TRADUÇÃO
- Localizações no meio de cidades e vilas palestinas que controlam, de forma discriminatória, a passagem de seus habitantes.
- Queer é um termo em inglês que, em geral, se refere às identidades que não se enquadram na heterocisnormatividade.